quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Quando eu era criança, esse era o meu Halloween.

 

Era uma noite dessas, com vento sussurrando segredos para as árvores. As ruas do bairro explodiam em risadas, fantasias, sacolas cheias de doces nas mãozinhas das crianças, com idades entre 9 e 12 anos. João usava uma capa preta, quase raspando no chão. Mariana era uma caveira, com o rosto pintado, os olhos fundos, misturando medo e diversão. Lucas, um bruxo com chapéu torto, Clara, com vassoura improvisada, parecia uma bruxinha de verdade.

De casa em casa, eles iam, rindo, gritando “doces ou travessuras! ” contandos histórias de fantasmas e vampiros. Tudo rolava como todo Halloween deve ser: divertido, e até um pouco assustador. Mas, de repente, João parou. Num banco da praça, um velho fumava cachimbo, encarando-os com um sorriso discreto, como quem sabia bem mais do que demonstrava.

— E aí, senhor, a gente te assustou? — João perguntou, exibindo dentes de plástico, um sorriso zombeteiro.

O velho soltou uma risada baixa e arrastada.

— Se me assustei? Não sei, rapaz. Essas fantasias de vocês são lindas e divertidas, mas não chegaram a me assustar. Vocês conhecem os monstros de verdade, os nossos monstros? Do nosso Halloween? 

Mariana franziu a testa.

— Nossos? Tipo o lobisomem?

— É, o lobisomem também. Mas tem muito mais bichos por ai, minha filha. O velho ajeitou o chapéu de palha, soprou a fumaça do cachimbo e continuou, olhando devagar para cada um. Já ouviram falar do Boi Tatá?

Clara balançou a cabeça negativamente.

— Não. O que ele faz?

— Ah, o Boi Tatá. Esse é fogo vivo, menina. Uma cobra com cabeça de fogo que brilha e corre no escuro da mata. Dizem que protege os campos e as florestas, e quem tenta botar fogo na mata, ele castiga. Os olhos dele são como duas brasas, e quando aparecem, não tem quem não corra!

O vento soprou mais forte. As folhas secas rodopiaram no chão, e Lucas engoliu em seco.

— E o Curupira? Já ouviram falar desse? perguntou o velho, meio sorrindo. Cabelos vermelhos, pés vivirados para traz. Engana caçador que maltrata bicho. Deixa as pegadas de poponta-cabeça para ninguém achar o caminho certo. Quem o desafia se perde, e às vezes, nunca mais volta.

Ninguém riu, nem João, que era o mais brincalhão.

O velho puxou outra tragada no cachimbo.

A fumaça ascendeu lentamente, criando contornos bizarros no céu.

— E a Mula Sem Cabeça. Ah, essa aí que da pavor. Ela galopa em noites de lua cheia, vomitando chamas e relinchando alto. Contam que é o castigo de uma alma infiel. Ao passar, a terra estremece. E quem escuta de perto, sente o coração pausar por um instante.

Mariana, com os olhos esbugalhados, questionou em um sussurro

— Ela fere as pessoas?

— Fere, claro que fere. Mas, acima disso, ela instrui. Revela as consequências de nossos atos indevidos e arrependimentos tardios.

O grupo silenciou. O ancião encarou os quatro e soltou uma gargalhada rouca.

— Acham que terminou, não? Pois não acabou, não.

Ele pousou o cachimbo no banco e continuou.

— Tem a Cuca também. Essa é antiga. Velha como as árvores. Se esconde, com olhos amarelados, aguardando as crianças desobedientes. Seu cabelo aparenta se mover sozinho, e sua pele, dizem que é fria como a noite. Quem a avista de perto, jamais a esquece.

Clara arregalou os olhos.

— Credo!

O velho gargalhou, contente com o espanto.

— E o velho do saco? Ah, ele anda nas ruas desertas, com um saco nas costas. Leva embora a criança teimosa, que desobedece aos mais velhos. E tem também o boi da cara preta. Esse aparece para quem maltrata os bichos, sabe? Dizem que os olhos dele ficam vermelhos, igual fogo, e o mugido... meu Deus, o mugido faz o chão tremer.

O grupo se olhou. O vento frio fazia um barulho estranho entre as árvores.

— E a loira do banheiro? — indagou Lucas, fingindo ser corajoso.

O velho levantou a sobrancelha.

— Essa aí não curte brincadeiras. É uma alma que ainda vagueia pelos colégios, a espera de quem a invoca por zuação. Cuidado com o espelho, rapaz. Às vezes, o reflexo não é só o seu.

Mariana engoliu em seco.

— E o bicho papão? Ele existe?

— Existe sim. Mas não como vocês pensam. Ele mora nos cantos escuros, à espera de criança mal-educada e daquelas que não querem dormir quando seus pais mandam. E tem também o chupa-cabra. Ah, esse é mais recente. Vive surgindo por aí, chupando o sangue dos animais. Ninguém nunca viu direitinho, mas o que sobra... é o silêncio. Um silêncio bem terrível.

As crianças ficaram paralisadas.

Só o vento a uivar e o bater dos galhos e folhas das árvores, rasgavam o silêncio.

João respirou fundo e falou — Acho que os monstros do Brasil são muito mais intrigantes do que os lá fora.

O velhote sorriu.

 — É verdade, rapaz. O Halloween dos filmes diverte, mas o nosso tem espírito, sabe? Eles fazem parte da nossa história. Esses monstros mostram o que é respeito, coragem e arrependimento. Na verdade, cada um deles vive secretamente dentro de nós.

Ele levantou-se lentamente, o cachimbo ainda fumegando no vento.

— E vou dizer mais uma coisa... ninguém aqui precisa temer esses monstros, de jeito nenhum. Se respeitarem os pais, obedecerem aos professores, cuidarem dos animais, não maltratarem a natureza, estudar tudo direitinho, nenhum deles vai pegar vocês. Eles só aparecem para quem se esquece de ser gente boa!

O grupo gargalhou, aliviado. Clara olhou para os amigos.

— A gente podia inventar o “Halloween brasileiro” pro ano que vem, hein?

— Boa! — exclamou Lucas.

O velho concordou, sorrindo.

— É isso mesmo. Deixem os vampiros para os filmes, pessoal. As histórias daqui são mais curiosas e realmente nos ensinam sobre respeito e amor.

Clara indagou sobre o nome dele.

O velho olhou para o céu e respondeu.

— Uns me chamam de Tio Barnabé, outros de Preto Velho. Maa sempre que alguém precisa de um conselho basta pensar em mim. Estarei bem aqui, sentado nesse banco, bem próximo da mata.

E ele sumiu, desaparecendo entre as árvores que pareciam se curvar com sua presença.

Os quatro ficaram imóveis, por um instante, escutando só o sussurro do vento e o tremor das folhas. A noite até parecia a mesma, porém dentro deles, alguma coisa mudou.

Mas, como crianças que eram, correram para a casa seguinte gritando:

— "Gostosuras ou travessuras?"

E você? Conhecia os nossos monstros? 


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